Tuesday, July 15, 2008

Medo I



Não, não e não, não vou fazer uma tese aqui sobre o medo construído. A maneira como o medo pode nos tornar pessoas domáveis. Você para de sair de ir a boates porque tem medo de que um babaca de um filhinho de desembargadora, juíza ou coisa que o valha se ache melhor que todos a sua volta e resolva exercer seus dotes para surrar, por exemplo. Tem gente que chama isso de evitar lugares perigosos. Mas pra mim isso é medo de tomar porrada de bobeira mesmo.
Tem gente que deixa de sair a noite e voltar de madrugada com medo de uma blitz (oficial ou não, da polícia ou não). Ou com medo de ser assaltado, passar no meio de um tiroteio.
Conheço pessoas que preferem sair do Recreio e ir para a Tijuca pela Zona Sul (!!!!!!) porque tem medo de atravessar a Linha amarela ou a Grajaú-Jacarepaguá. Durante o dia.
Tem gente com medo de tudo.

Toque de recolher tácito, é isso que estamos vivendo. Claro que sempre existe gente doida que não vai abrir mão da vida social mesmo, que vai continuar na noite por aí, rodando pela cidade, seja de van, de taxi, de ônibus ou a pé. A vida não pode parar.

A primeira vez que eu senti medo da violência urbana, lembro exatamente da situação. Ia todos os sábados ao Antares, conjunto habitacional em Santa Cruz, reunir-me com jovens de lá através de uma ONG. Levava comigo meu grande amigo Cahê. Ele morava do outro lado da Cesário de Melo, na comunidade das Três Pontes, já em Paciência. O Antares era Comando Vermelho, o QG do CV na zona oeste. Tudo em volta era Terceiro Comando. Inclusive a Três Pontes.
E a chapa era quente. No meio do caminho entre uma e outra, mais para o lado do Antares, tem uma estação ferroviária, a Tancredo Neves. O povo das Três Pontes não devia pegar trem ali, tinha um boca bem na entrada da estação. Isso sem falar que de vez em quando, passava na Cesário de Melo um carro atirando para a rua de acesso ao Antares e a estação.

Mas eu não tinha medo de pegar o trem não, muito pelo contrário. Eu tive medo de que algo acontecesse ao meu amigo Cahê, muito mais do que comigo. Nós fazíamos nossas reuniões com a garotada e depois parávamos em um bar para tomar umas cervejas. Antes de anoitecer, muitas vezes atravessávamos a Cesário de Melo para ir a casa de Cahê. Todos sabiam que circulávamos entre as duas comunidades. Todos.

Até que um dia soube de uma caso de uma cara que morava nas TP e namorava uma menina do Antares. Um “belo“ dia, me contaram, ao entrar na rua da estação Tancredo Neves, sumiu. Seu corpo, devidamente separado de sua cabeça, foi encontrado dias depois nos trilhos atrás do conjunto. Todos sabiam porque ele tinha sido assassinado. Mas ninguém sabia por quem, já que esse “diálogo“ entre as duas comunidades não era bem visto por nenhum dos dois lados.

Todos conhecemos essas histórias de Romeu e Julieta modernas, entre casais que vivem em ‘comunidades inimigas‘. Mas aquela noite dormi no conjunto e tive um sonho horripilante. Sonhei que eu e Cahê havíamos sigo pegos pelos ‘caras‘ do Antares e que nos matariam porque estávamos passando informações para os caras das TP. Diga-se de passagem que de X-9 eu não tenho nada, nem ele. Mataram meu amigo na minha frente e eu começava a ser estuprada. Pelo menos acordei aí. No dia seguinte tive uma crise de choro horrível junto a esse meu amigo. Ele estava impassível, corajoso, como sempre foi e é.

Sempre brincava com minha mãe quando ia ao Antares e a outras comunidades/favelas do Rio que tinha uma certeza na vida: de que iria morrer “de tiro“. Por conta dessa certeza não tinha medo de ir a favela alguma. E não tinha. E, pra ser sincera nem sei se já tenho esse medo. Aquele dia tive pavor por conta do meu amigo, medo de que algo pudesse acontecer com ele, o sonho havia sido tão real...

Aquela foi a primeira vez que tive medo da violência urbana na cidade. Passei a evitar atravessar do Antares para as Três Pontes. Até que não fui mais nem a uma, nem a outra.


imagem: criticandomeiomundo.blogspot.com/ 2007/06/violenciaurbana

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